14 novembro 2010

frente & verso


Centre Georges Pompidou, Paris, maio de 1987.

Republicado hoje em homenagem às recém-visitantes de Paris...


12 novembro 2010

o uso inconsciente do dinheiro


minha palestra:
O USO IN-CONSCIENTE DO DINHEIRO
no encontro do
TEDx Vilda Madá na Livraria Cultura
sobre
"O uso consciente do dinheiro"


03 outubro 2010

o genial gilberto freyre

A recente publicação de um livro póstumo de Gilberto Freyre me reconduziu à sua obra prima Casa-Grande e Senzala. Este livro já me causara uma forte e duradoura impressão quando o li a primeira vez, na década de 80, e o recomendo a todos que queiram entender o Brasil, mesmo quem não tenha formação em ciências sociais. Leiam-no, inclusive, pela boa literatura que é. Como uma saga ou um romance histórico.

Casa-Grande é um rico retrato do Brasil colonial. É verdade que, como apontam alguns críticos, ele carrega as cores da realidade nordestina, especialmente do Pernambuco de Freyre. Mas ali estão as características marcantes do organização social dos primeiros três séculos de uma proto-nação, da economia açucareira, da escravidão, das influências culturais dos portugueses, índios e negros; e do que, na visão do sociólogo, marca definitivamente o Brasil, a miscigenação entre esses três grupos populacionais. Uma mistura que ele reconhece como riqueza, como vantagem, e como patrimônio.

Gilberto Freyre desfaz o mito de que fomos colonizados por uma escória formada por degredados, até porque os portugueses não tinham tanta gente para degredar. Foi projeto de Portugal ocupar suas terras e plantar aqui as bases de uma colônia produtiva, e, para isto, teria para cá enviado representantes de sua nobreza.



Algumas passagens, escolhidas quase ao acaso, dão uma pequena amostra da beleza do texto que, nos anos subseqüentes à sua publicação, em 1933, foi traduzido para dezenas de idiomas e acolhido com entusiasmo pela comunidade acadêmica.

A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que no norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo. Sem rr nem ss; as sílabas finais moles; palavras que só faltam desmanchar-se na boca da gente.

Freyre dedicou grande espaço as contribuições dos índios à cultura, passando pela pela religiosidade, pela culinária e pela língua. Quando fala do indígena na formação da família brasileira, e coerentemente com sua própria vida privada, é grande também nesse capítulo a ênfase dada à sexualidade. Freyre afirma, com muita picardia, que “o europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia [de Jesus] precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne”. Além disso, a higiene e a vaidade, o gosto pelos enfeites, teriam sido outras das herenças desse grupo

Da cunhã é que nos veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A higiene do corpo. O milho. O caju. O mingau. O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo de coco, reflete a influencia de tão remotas avós.

Filho de um importante latinista, como relata em seu livro póstumo De Menino a Homem, Freyre construiu uma sólida formação intelectual. Estudou num colégio americano, aos 14 anos já ensinava latim, e aos 18 segue para os Estados Unidos, onde foi aluno de Franz Boas, um dos fundadores da Antropologia Cultural. A publicação de Casa-Grande e Senzala, quando tinha apenas 33 anos de idade, tornou-o uma verdadeira celebridade. Freyre não usa de nenhuma falsa modéstia quando relembra esses fatos, e o seu sucesso com as mulheres, em suas memórias.

A genialidade de Gilberto Freyre fez dele um pioneiro nos estudos interdisciplinares, e sua obra foi reconhecida pela originalidade com que articula saberes de diferentes áreas, além do estilo refinado, quase literário, com que constrói o seu retrato do Brasil colonial. Se o Brasil quer ter orgulho de si mesmo – ou do que de bom tem, em tempos de governos que nos envergonham diante da comunidade internacional – é bom que mantenha viva a memória deste ilustre brasileiro. (mais)

27 setembro 2010

perdas & ganhos

Estou cansada de tantos acontecimentos em tão pouco tempo; tantos ganhos e tantas perdas... Ainda espero fazer uma vida pra mim... Como? Não sei!
Lúcia, 53 anos, durante sessão de terapia.

Nos capítulos anteriores tratei de vários aspectos da vida no mundo de hoje, na sociedade globalizada, tecnificada, interconectada e em permanente transformação. As múltiplas facetas dessa sociedade tornam impossível qualquer apreciação ou julgamento simplista a respeito dos seus rumos e das consequências futuras. É muito difícil dizer se a sociedade é “melhor” ou “pior” do que as gerações que nos antecederam. Mais difícil ainda dizer se somos melhores ou piores que nossos antepassados. Pelo menos, sem que se deixe claro de que aspectos estamos falando.
Prefiro pensar a sociedade contemporânea em termos de ganhos e perdas, das diferenças em relação ao passado, e dos dilemas que ela nos apresenta. Neste capítulo, faço um resumo da segunda parte do livro, complementando alguns temas e sistematizando os vários desafios à identidade na forma de quatro classes de dilemas fundamentais vividos pelos viajantes dessa grande nave Terra.

1. IDENTIDADE LOCAL versus IDENTIDADE GLOBAL

A globalização traz consigo perdas, corrói a segurança dos saberes tradicionais, e faz com que se dispersem, no caldeirão cultural globalizado, alguns referenciais da identidade cultural local. Mas a globalização também amplia os horizontes existenciais e o conhecimento do mundo. Além disso, ela aproxima pessoas e rompe com preconceitos.
Em seu livro Cultura global e identidade individual, Gordon Mathews mostra como o conceito de cultura vem se tornando cada vez mais problemático, a tal ponto que a noção de “cultura nacional” está sendo colocada em xeque nas ciências sociais. Já não pertencemos mais a uma cultura específica, mas podemos escolher (até onde de fato se trata de uma escolha) aspectos de nossas vidas naquilo que ele chama de “supermercado cultural global”.
Vivendo em Florianópolis, Fernando percebe esse fenômeno e relata um pouco de sua experiência de estar imerso em processos globais de interdependência e de influências mútuas:

Como amante da música, pude conhecer muito mais de música depois da abertura comercial brasileira, em 1990, quando passamos a ter acesso a CD’S importados. Não só isso, na filosofia também. O Budismo foi uma delas. Uma das coisas que me ajudou na época da minha crise foi, através do Yoga, ter descoberto um pouco do Budismo. Não se falava em Budismo aqui no Brasil, até pouco tempo atrás.

Os conflitos entre cultura local e o supermercado cultural global nada mais são, afinal, do que manifestações de outros dilemas históricos da humanidade, que podem ser formulados em termos como tribalismo versus nacionalismo, nacionalismo versus globalismo, e Estado versus mercado. A localidade não se opõe à globalidade, mas se confunde com ela, surge com mais força como um movimento de resistência.
Muitos cientistas sociais apontam o agravamento de fundamentalismos religiosos e as lutas nacionalistas e separatistas como expressão da resistência às influências globalizantes nas esferas econômica, política e cultural. Para o sujeito isolado, o indivíduo, fica o desafio de lidar com o dilema entre ser fiel às suas “raízes” e ser antenado com o mundo; entre ser autêntico e fazer parte de grupos mais amplos, o que já se confunde com o próximo dilema.




2. PERTENCIMENTO versus AUTENTICIDADE

Andar no moda e correr o risco de ser um maria-vai-com-as-outras, ou se vestir com autenticidade e ser visto como um estranho-no-ninho? Ouvir as músicas que a maioria das pessoas curtem, ou gostar de música erudita e não ter com quem trocar idéias a respeito? Assistir ao Big Brother Brasil e participar das conversas de cafezinho, ou se recusar a consumir um produto cultural de qualidade incerta, e ficar por fora do papo?... Os exemplos são virtualmente infinitos, mas o dilema é o mesmo: o quanto queremos, podemos, ou somos impelidos a nos identificar com as tendências dominantes, e o quanto nos mantemos “fiéis a nós mesmos”.
Estamos no campo do dilema entre ser único e fazer parte. Já afirmei, na primeira parte do livro, que toda identidade pessoal é também uma identidade grupal. Aliás, e disto que, em última instância, trata este livro. Meus entrevistados, principalmente os mais jovens e com formação universitária, fizeram-me ver que tais dilemas são sentidos também por eles. Bruno percebe que não há como evitar a globalização e seus efeitos, uma vez que “fazer parte dessa sociedade é inevitável”, e que o fundamental ter crítica a esse respeito e “saber como viver nesta sociedade”. Fernando afirma ser necessário “saber monitorar as influências”. E volto aqui à frase de Ana: “Ninguém pode não ser simplesmente nada”, no sentido de que é preciso fazer parte de algum grupo de identificação.
O livro de Gordon Mathews trata de pensar se existe, ou existiu alguma vez, algo que possa ser chamado de “lar cultural”. Em outras palavras, se existe uma cultura para chamar de sua... Sua investigação revela que, uma vez dentro do supermercado cultural, não há como retornar a esse suposto lar. Quer aqueles que continuam a buscá-lo, quer aqueles que querem dele fugir, o que podem fazer é tentar administrar essa inevitável circunstância, ao mesmo tempo em que lutam para obter reconhecimento e legitimidade para suas opções. Por menos cosmopolita que o indivíduo seja, uma vez tendo acesso aos veículos de informação e aos meios de transporte, estará inevitavelmente em conexão com o mundo.
Uma faceta secundária do dilema pertencimento versus autenticidade é aquele que se estabelece entre segurança e autonomia, e aqui voltamos ao papel da família. Em outras palavras, é o dilema entre o nó e o ninho. Fazemos parte de uma geração que assiste e usufrui a perda do poder normativo tradicional das famílias, enquanto florescem as novas modalidades de relacionamentos emocionais estáveis, a partir de uma perspectiva de maior igualitarismo e respeito mútuo nas relações entre homens e mulheres, e entre pais e filhos.
Mas, será possível permanecermos no ninho sem estarmos atados? Não há dúvidas de que as novas formas de contratos matrimoniais e de sexualidade agregam liberdade e mobilidade à vida das pessoas. Mas talvez haja um preço a ser pago: um número maior de pessoas solitárias, mais idosos vivendo sozinhos ou em abrigos, e famílias menores e menos agregadas.

3. CONHECIMENTO versus DÚVIDA

Vivemos na era da informação e dos excessos. Se por um lado temos acesso crescente à informação, temos, na mesma medida, mais incertezas. O que os mitos, a religião e a tradição nos ensinavam, e que a família e a escola reforçavam, de pouco nos vale hoje. A cada passo do caminho, temos de pensar para que lado seguir.
As pessoas, especialmente aquelas que vivem nos grandes centros urbanos e que navegam a Internet, estão expostas a uma grande quantidade de modelos comportamentais e culturas alternativas. Com isso, aprende-se mais sobre o que se pode esperar. Trata-se de uma socialização secundária, que se segue à primária, aquela que se dá na convivência da criança com a família e a escola, que ocorre mesmo durante a vida adulta. Kenneth Gergen, em The saturated self, fornece um repertório significativo de aprendizados que um cidadão americano pode ter vivendo em qualquer grande cidade daquele país.

Durante uma hora numa rua de cidade somos informados dos estilos de vestir de negros, brancos, classe alta, classe baixa, e mais. Podemos aprender as maneiras dos executivos japoneses, camelôs, sikhs, Hare Krishnas, ou tocadores de flauta do Chile. Vemos como relações são mantidas entre mães e filhas, executivos, amigos adolescentes, e trabalhadores da construção civil. Uma hora num escritório de negócios pode nos expor aos pontos de vista de um empresário texano de petróleo, dum advogado de Chicago, e dum ativista gay de São Francisco. Comentadores de rádio compartilham idéias sobre boxe, poluição, e abuso infantil. [...] Via televisão, uma miríade de figuras é introduzida em nossos lares, as quais de outra forma jamais entrariam. Milhões de pessoas assistem TV, enquanto convidados de talk-shows – assassinos, estupradores, prisioneiras, abusadores de crianças, membros da KKK [Ku-Klux-Klan], pacientes psiquiátricos, e outros geralmente desacreditados – tentam fazer suas vidas inteligíveis. Há poucas crianças de seis anos de idade que não possam fazer pelo menos uma avaliação rudimentar sobre a vida nas vilas africanas, sobre as preocupações dos pais que se divorciam, ou sobre o problema das drogas nos guetos. A cada hora nosso depósito de conhecimento social se expande em amplitude e sofisticação.

Por outro lado, afirma o mesmo autor, o efeito colateral desse fenômeno é o que ele chama de “expansão da inadequação”, ou seja, um crescente auto-questionamento sobre os próprios parâmetros e crenças. É uma idéia muito próxima ao conceito de reflexividade moderna. Seja qual for o nome empregado, trata-se de uma angústia frente ao universo de possibilidades e de escolhas com que se defronta esse Homo urbanus em sua eterna luta por sobrevivência.
Quando temos a sensação de que tudo vale, sobrevêm a angústia de que nada é seguramente mais válido do que o resto das opções. E isto vale para os cuidados para com o corpo, a educação dos filhos, as práticas amorosas e sexuais, as escolhas morais. Sobre este mesmo tema, vale a pena lembrar os versos da canção “Hermana Duda”, do extraordinário compositor e cantor uruguaio Jorge Drexler, a quem considero um dos grandes intérpretes do nosso tempo na esfera da música popular.

No tengo a quien rezarle pidiendo luz,
Ando tanteando el espacio a ciegas.
No me malinterpreten,
No estoy quejándome.
Soy jardinero de mis dilemas.
Hermana duda,
Pasarán los años,
Cambiarán las modas,
Vendrán otras guerras,
Perderán los mismos
Y ojalá que tu
Sigas teniéndome a tiro.

No momento em que escrevo, na Argentina é aprovada a união civil entre homossexuais, e no Brasil uma lei proíbe que se use qualquer castigo físico nos filhos, mesmo as chamadas “palmadas pedagógicas”. As leis, como sempre, correm atrás dos costumes. Para o bem ou para o mal, as leis vão refletindo e normatizando as realidades criadas e recriadas incessantemente pela sociedade.
Ana, apesar de sua juventude, é capaz de descrever com muita acuidade a complexidade das mudanças sociais no que diz respeito à educação dos filhos e suas consequências futuras:

Com todas as mudanças boas que vieram, vieram dois lados. Fizeram essa revolução: pais não podem mais bater nos filhos. Está tudo bem, mas uns levaram isso muito bem e outros deixaram as crianças completamente soltas. Mas o ponto aonde eu quero chegar é o seguinte: essas crianças, a gente está cuidando delas agora, mas essa evolução tem dois lados: tem a parte muito boa, e para onde é que a gente vai, na parte ruim, sabe?!

No vácuo gerado pela dúvida surgem os especialistas, os consultores, a legião de profissionais personal. Saem de cena os padres, entram em cena os terapeutas.

4. INDIVIDUALIDADE versus INDIVIDUALISMO

Podemos ser autênticos sem sermos indiferentes aos outros? Até onde nossas liberdades de escolha, tão ampliadas em relação às gerações que nos precederam, podem se transformar num individualismo desenfreado? Estaria um suposto narcisismo consumista levando ao desmoronamento dos alicerces morais da sociedade? O dilema moral entre individualidade e individualismo abriga uma série de outros componentes, como as possíveis – mas não necessárias – contradições entre amor-próprio e altruísmo, auto-preservação e solidariedade social, oportunismo e honestidade.
Há, de fato, uma percepção muito difundida de que o ser humano contemporâneo sofre de um empobrecimento moral generalizado, e que esse empobrecimento é indissociável das relações econômicas vigentes globalmente, ou seja, do capitalismo. O indivíduo narcisista seria guiado por uma lógica de auto-preservação e de sobrevivência psíquica, sendo pouco confiável e portador de sistemas de valores geralmente corruptíveis. Por exemplo, é assim que Heloísa refere-se ao tema da mercantilização das relações:

Eu fui criada num ambiente em que vigoravam alguns princípios que foram muito importantes para eu desvendar o mundo. Quando eu me vi frente ao mundo, eu vi que muitas coisas eram extremamente diferentes, principalmente no que diz respeito aos valores, principalmente hoje, quando tudo virou mercadoria. Isto me dá muita angústia. De repente eu vejo que as coisas estão muito descartáveis e eu sei a dimensão que isso tem. As pessoas falam e “desfalam”, e eu persigo tanto a coerência... Acho que são conflitos que me geram tanto a sensação que eu sou inadequada, como que talvez o problema esteja lá fora. Acho que esse mundo no qual a gente vive está doente. Mas acho que a responsabilidade também é minha. Enfim, acho que o problema é de ambos, do mundo e meu.

Heloísa tem razão em suas preocupações, enquanto, felizmente, ela própria é uma evidência de que ainda há quem se preocupe, quem se responsabilize, e quem acredite que pode fazer uma diferença. E isto vale para a mercantilização e a competição, tanto quanto para o cuidado com o planeta, o respeito para com a diversidade humana, e a construção de relacionamentos mais honestos.

Referências
Bauman, Z (1999) Globalização: as consequencias humanas. Rio de Janeiro: Zahar.
Gergen, KJ (1991) The saturated self. New York: Basic Books.
Giddens, A (2002) Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar
Hall, S (2000) A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A.
Mathews, G (2002) Cultura global e identidade individual. Bauru: EDUSC.

[Capítulo inédito de Os outros que somos]

21 setembro 2010

drogas para todos os gostos


Existe na sociedade contemporânea um padrão “aditivo”, ou seja, que induz à dependência? Pode-se falar em dependência a outras “drogas” que não as químicas, como jogo, comida e sexo, nos mesmos termos em que pensamos as dependências químicas? A comercialização de quais drogas deve ser criminalizada, e de quais deve ser liberada? E o consumo? Qual o peso relativo dos fatores sociais e dos individuais nas dependências? Existe uma relação entre transtornos narcísicos e o uso abusivo de drogas? Como se articulam os quadros de abuso de substâncias e os demais transtornos mentais?
O problema das drogas coloca a sociedade diante de muitas questões, a maior parte delas sem respostas definitivas. Em seu livro Drogas, por que as pessoas usam?, Francisco Baptista não apenas responde a algumas delas como traça um amplo painel sobre as drogas e seu consumo no Brasil. O autor não faz distinção entre as substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas, desde que sejam capazes de produzir dependência e causar danos significativos à saúde. Assim, inclui entre as drogas discutidas a cafeína, o tabaco, o álcool, os tranqüilizantes e os remédios psicoestimulantes, usados de maneira indiscriminada no Brasil, principalmente como inibidores de apetite.
O abuso de drogas não pode ser explicado através de fórmulas esquemáticas ou causalidades lineares. Não há culpados isolados nem causas únicas. Como tudo que se passa no campo da conduta humana, existem múltiplos fatores envolvidos. No entanto, não se pode fechar os olhos para o fato de que a sociedade contemporânea vem se caracterizando por níveis inéditos de produção, venda e consumo de substâncias psicoativas, e que as pessoas, principalmente os jovens, lançam-se numa corrida desenfreada em busca de novas sensações, de prazeres imediatos, de estados alterados de mente, como numa frenética fuga da realidade.
O narcisismo cultural da contemporaneidade está na base de uma mentalidade consumista, de uma insatisfação permanente, e de um vazio existencial que busca alívio no consumo de substâncias que, num primeiro momento, podem trazer sensação de prazer, mas que cobram um alto e crescente preço pela manutenção deste mesmo prazer. Com o tempo, pouco ou nada dele resta, senão a necessidade compulsiva de aliviar a falta da própria droga. Entre aqueles que buscam ajuda psiquiátrica e psicoterápica, não é raro observar casos de uso e abuso de drogas como uma tentativa desesperada de preencher o vazio existencial, aliviar a insegurança ontológica, ou amenizar sintomas de outros transtornos mentais associados.
Os sintomas ansiosos que levaram Fernando a me procurar inicialmente estavam associados a um uso crescente de maconha. Ele buscava alívio para suas angústias na maconha, que, por sua vez, acabou por desencadear várias crises de ansiedade. Na medida em que se tratou, com remédios e com terapia, diminui significativamente o consumo, tendo passado longos períodos em abstinência.
Outro paciente, um jovem de 19 anos que apresentava problemas de conduta e uso de maconha, cocaína e ecstasy, quando iniciou o tratamento revelou vários sintomas sugestivos de psicose. Ele vinha usando essas drogas desde há anos, e tinha uma história familiar importante de pessoas com esquizofrenia e transtorno bipolar de humor. Já existem muitas evidências científicas de que a exposição precoce às drogas, mesmo que exclusivamente a maconha, aumenta em praticamente dez vezes o risco de desenvolver psicoses. Felizmente, este jovem tem conseguido manter-se afastado das drogas, ciente de que disto depende sua saúde mental.



Há hoje uma larga produção artística, principalmente nas artes cênicas, sobre este tema. Poucos filmes, entretanto, impressionaram-me tanto quanto “Réquiem para um Sonho”, do diretor novaiorquino Darren Aronofsky. São histórias paralelas de quatro personagens. Enquanto um jovem, e sua namorada, vão se enredando nas teias da dependência à heroína, sua mãe, abandonada em casa, torna-se dependente de substâncias prescritas por médicos para emagrecer. Durante o dia toma anfetaminas e à noite tranqüilizantes, para dormir. Entre uns e outros, consome de forma igualmente compulsiva os programas populares da TV americana, até ver-se dentro deles, conduzida por delírios e alucinações resultantes do abuso das substâncias. No filme evidencia o problema da dependência a substâncias lícitas, como os remédios, e a outras formas de anestesiamento mental, como pode ser a televisão.
O Brasil, segundo noticiado recentemente, já é um dos países do mundo onde mais se consomem os tranqüilizantes, prescritos muitas vezes de forma irresponsável pelos próprios médicos. O medicamento clonazepam, mais conhecido pelo nome comercial Rivotril®, já é o segundo remédio mais vendido nas farmácias do Brasil. É uma situação grave, levando-se em conta que só pode ser comercializado mediante receita médica. Este é um potente tranqüilizante que, quando usado corretamente, pode ser um valioso instrumento no tratamento de transtornos psiquiátricos. Entretanto, sua prescrição continuada e indiscriminada pode trazer efeitos indesejáveis a curto e longo prazos, entre os quais uma importante dependência química.
Vivemos numa sociedade que é indutora de dependências de toda natureza, que incluem o jogo, os videogames, a Internet, a televisão, passando pelo sexo e pela comida, até uma gama enorme de substâncias que atuam no cérebro. A mídia exerce um papel importante nesse problema, possivelmente muito mais como indutora do uso do que como veículo de educação e prevenção. Ainda não existem estudos definitivos quanto à eficácia das campanhas contra as drogas. E há pelo menos um estudo mostrando que as leis que restringem os locais onde se pode fumar são mais eficazes entre os adolescentes do que aquelas fotos horríveis estampadas nos maços de cigarro.
Ainda assim, não se pode negar de que o conjunto de ações, que abarcam os campos da legislação, tributação, educação e repressão, têm contribuído decisivamente para um decréscimo do consumo de cigarros no Brasil. Uma pesquisa recente do INCA (Instituto Nacional do Câncer) mostrou que, em 1989, 33% dos brasileiros maiores de 18 anos fumavam. Hoje essa proporção é de 18%, tendo ocorrido uma queda de 45%.
Enquanto não existem divergências sobre a necessidade de severo combate ao tráfico de drogas, o mesmo não se pode dizer quanto à maneira de lidar com o consumo. Francisco Baptista é enfático ao criticar a criminalização do consumo, atitude que em sua opinião só reforça a crença de que o usuário é malandro, vagabundo, ou pessoa sem caráter. Esta perspectiva na maioria das vezes só acarreta danos ao próprio usuário, além de significar uma restrição à liberdade individual. O tema da descriminação do consumo, de fato, é bastante sensível e polêmico. As experiências de outros países têm mostrado resultados contraditórios e inconclusivos.
A atual epidemia de crack, que tem ganhado – ainda que tardiamente – algum espaço nos noticiários, impõe a busca de soluções urgentes. Tem-se assistido inclusive em telejornais o desespero de famílias em busca de ajuda para jovens seriamente afetados pelo abuso dessa substância destrutiva. A sociedade organizada e o poder público precisam oferecer respostas urgentes ao problema. O governo já estaria dando um passo importante se destinasse mais verbas para o setor da saúde mental, que sofre de muitas deficiências nesta e em outras áreas. São necessários programas específicos de tratamento no Sistema Único de Saúde, a criação de clínicas especializadas e a ampliação no número de leitos psiquiátricos em geral, e para o tratamento dos dependentes químicos.

Ilustração: cena de Réquiem para um sonho.

05 setembro 2010

sacanagens de gilberto freyre


Trechos do livro recém-publicado de Gilberto Freyre, De menino a homem: de mais de trinta e de quarenta, de sessenta e mais anos. Livro de memórias escrito na forma de um diário. O velho Freyre mostra aqui a mesma picardia que escandalizou os mais puristas em seus relatos das sacanagens que rolavam entre a casa-grande e a senzala. (mais)

Longe de ser um Vieira no meu domínio sobre a língua portuguesa abrasileirada, quando, cada noite, converso com Deus ou com Cristo ou com Maria, como se conversasse com amigos íntimos, as palavras que uso são as mais tropicais, as mais telúricas, as mais ecologicamente brasileiras. Não que me repugne o latim, de vogais as mais doces de Igreja e que aprendi com Meu Pai. [...]
Quando, conversando com Deus, abordo assuntos sexuais, que palavras uso para designar fatos dessa espécie? Só as eruditas? Só as elegantes? Só as cerimoniosas?
Devo dizer que não. Por vezes decido que Deus prefere que, como íntimo, seu amigo, seu confidente, os termos relativos a coisas de sexo sejam os cotidianos e até, dentre os cotidianos, os mais crus. Caralho, por exemplo. Não há sinônimo da palavra "caralho" que diga o que diz, pura e cruamente, "caralho".

04 setembro 2010

a vida é atroz

A vida é atroz, nós o sabemos. Mas precisamente porque espero pouca coisa da condição humana, os períodos de felicidade, os progressos parciais, os esforços para recomeçar e para continuar parecem-me tão prodigiosos que chegam a compensar a massa imensa de males, fracassos, incúria e erros. As catástrofes e as ruínas virão; a desordem triunfará; de tempos em tempos, no entanto, a ordem voltará a reinar. A paz instalar-se-á de novo entre dois períodos de guerra; as palavras liberdade, humanidade e justiça recuperarão aqui e ali o sentido que temos tentado dar-lhes.
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano.


01 agosto 2010

espaçonave Terra


No mundo contemporâneo, as ameaças ao indivíduo e à espécie, à integridade pessoal e à sobrevivência da humanidade, confundem-se em vários níveis sobrepostos. Estamos sujeitos a ameaças que passam pelos conflitos bélicos e pelo terrorismo internacional, ganham maior concretude na criminalidade urbana, e refletem-se na violência do trânsito e na violência doméstica, para daí perpetuarem-se num eterno ciclo. Os efeitos desagregadores do capitalismo flexível, em especial a predominância do binômio mercantilização-competitividade, estão fortemente presentes na vida social.

Esta é também uma “sociedade de risco”, como afirmam alguns sociólogos, especialmente no que se refere à forma como vivenciamos os riscos à saúde e ao meio ambiente. E já está abalada a crença na capacidade da ciência e da tecnologia propiciarem soluções para todos os problemas da vida, assim como a certeza de que o homem pode dominar e aproveitar racionalmente os recursos da natureza.

Para nós, brasileiros, a inflação, a corrupção, a falta de acesso à saúde e à educação, a insegurança no emprego e a violência urbana são mais perceptíveis cotidianamente do que outros riscos globais. Mas, nas economias mais sólidas e influentes, o período de “guerra fria” foi particularmente tenso, e representou um perigo muito real de uma ecatombe nuclear que poderia nos levar ao auto-extermínio, o que contribuiu para o surgimento uma consciência pacifista universal que muitas vezes desconsidera as contingências históricas e o papel civilizador de algumas guerras.

Quanto às ameaças ecológicas ao planeta e à sobrevivência da espécie humana (para não falarmos de tantas outras espécies em risco de extinção), difunde-se rapidamente o conhecimento de que estamos todos “no mesmo barco”; e de que tais ameaças têm origens sistêmicas e globais. A consciência ecológica vem acompanhada de profundas mudanças de mentalidade e de hábitos. Há duas gerações, caçar passarinhos era uma das modalidades mais comuns de brincadeira infantil. Hoje, são as crianças as primeiras a se rebelarem contra qualquer forma de agressão à fauna silvestre. As mudanças estendem-se a um grande espectro de comportamentos cotidianos, que vão desde não jogar lixo na rua até a condenação e restrição do hábito de fumar.

A criação de uma rede mundial de telecomunicações que transforma o planeta numa “aldeia global”; e as relações de interdependência econômica e ambiental, são acompanhadas igualmente de uma globalização da consciência ecológica e pacifista. Sentimo-nos como tripulantes da “espaçonave Terra”, de tal modo que qualquer coisa que se faça em seu interior afetará a todos os passageiros...

Sim, é verdade que existem fortes tendências ao incremento da competitividade e do narcisismo cultural, que impulsionam as pessoas a buscarem o interesse próprio a todo custo, numa espécie de “salve-se quem puder” ou “cada um por si e Deus por todos”. Mas, como tudo o mais na sociedade, há forças que agem em sentido contrário a estas tendências. As ações de defesa à ecologia mobilizando pessoas ao redor do globo são fundamentalmente de natureza solidária e altruística; o florescimento de uma cultura do voluntariado, que leva pessoas desinteressadas a se engajarem em atividades de apoio a quem mais necessita; uma crescente consciência de cidadania acompanhada de maior responsabilidade pela participação nos espaços de decisão coletiva; e maior respeito às diversidades inerentes à condição humana.

A psicologia evolucionária, ou darwinista, sugere que um dos atributos mais importantes para a sobrevivência de nossa espécie é o fato de sermos fundamentalmente cooperativos. Ou seja, se tivesse predominado na evolução as forças egoístas sobre aquelas da solidariedade e da cooperação, a espécie humana não teria sobrevivido. Assim, amor, piedade, generosidade, remorso, afeição amistosa e confiança duradoura, por exemplo, são partes de nossa herança genética (tanto ou mais quanto os sentimentos hostis). Além disso, os estudos de psicologia têm revelado o que sabemos intuitivamente: que ajudar o próximo pode fazer tão ou mais bem a quem o faz do que a quem recebe. Isto talvez seja uma expressão da herança evolutiva que apenas mencionei. A solidariedade – embora errática e muitas vezes cega ao que não é transformado em tele-dramaturgia – ainda assim se manifesta fortemente, em todas as partes do mundo, diante das grandes catástrofes climáticas e das guerras.

A cultura e os esportes são veículos poderosos de encontro e de desenvolvimento do espírito de solidariedade e do sentimento de fraternidade universal. Eventos como as Olimpíadas e a Copa do Mundo rompem barreiras políticas, culturais e econômicas, e contribuem decisivamente para a paz. O mesmo pode-se dizer sobre as manifestações culturais.

Um exemplo significativo de cultura globalizada me foi dado através de um típico produto da sociedade contemporânea: um dvd. Trata-se de “Yo-Yo Ma Inspired by Bach – Cello Suítes N° 5 & 6”, uma produção internacional em que o violoncelista interpreta suítes de Bach em associação com outros formas de arte. Neste caso, lê-se o seguinte na contracapa do dvd: "Mestre do Kabuki, o ator Tamasaburo Bando embarca numa jornada para descobrir, através da dança tradicional japonesa, a universalidade e emoção da Quinta Suíte de Bach. O resultado é a reveladora, intercultural e transoceânica colaboração com Yo-Yo Ma, sensivelmente documentada pelo diretor Niv Fichman". O interessante disso é que Bach era alemão, Tamasaburo Bando é japonês, Yo-Yo Ma nasceu na França, e é filho de pais chineses, e o diretor Niv Fischman é americano*.



Mais recentemente, ganhou visibilidade um projeto de união entre os povos através da música, que deu origem ao um dvd denominado “Peace through music”, no qual músicos de todas as partes do planeta são conectados tecnologicamente para executarem conjuntamente canções igualmente provenientes de diferentes berços culturais.

Foi a civilização ocidental que inventou os direitos humanos e pregou – a partir do Iluminismo – a necessidade de autonomia individual e de liberdade, a capacidade de pensar por si mesmo recorrendo à razão, e a aspiração ao progresso. Não nos esqueçamos, entretanto, que apesar da crença na “racionalidade moderna”, a humanidade deu abrigo, até muito recentemente, a comportamentos auto-destrutivos e bastante primitivos: o racismo, a escravidão, a desigualdade entre os sexos, a discriminação das minorias, o terrorismo de Estado, a tortura, o genocídio, o totalitarismo, os campos de concentração. Para ficarmos apenas com o primeiro desses crimes, é importante que nos demos conta de que há pouco mais de um século ainda convivíamos, no Brasil, com a vergonha da escravidão como uma instituição legalmente e, para muitos, moralmente aceita. Quase todos eles persistem, aqui e ali, dependendo do desenvolvimento da sociedade civil e dos organismos oficiais. Mas já não são tolerados e alavancados por populações inteiras, como ocorreu com o Holocausto, em pleno século xx, numa sociedade européia econômica e culturalmente desenvolvida.

Sim, estamos – a sociedade como um todo – fazendo grandes progressos, apesar das guerras, dos crimes ambientais, da violência urbana, das iniqüidades sociais que persistem. Nas sociedades desenvolvidas, pelo menos, já não se admite que pais castiguem fisicamente seus filhos, que maridos agridam suas esposas, ou que pessoas sejam discriminadas pela cor de sua pele. Não é pouca coisa.


* Assista a um segmento do vídeo aqui
[Capítulo original de Os outros que somos]


24 julho 2010

transtornos alimentares


Você tem fome de quê? Esta é a pergunta que não quer calar na música “Comida”, dos Titãs. A letra discute o lugar que a comida pode tomar na vida das pessoas e afirma que o sustento material não é suficiente para ser feliz: “A gente não quer só comer, a gente quer comer e quer fazer amor. A gente não quer só comer, a gente quer prazer pra aliviar a dor. A gente não quer só dinheiro, a gente quer dinheiro e felicidade”.
Num mundo de excesso de oferta de bens adquiríveis, inclusive alimentos, necessidades emocionais podem manifestar-se simbolicamente através dos alimentos e dos hábitos alimentares. Não é para menos que os chamados transtornos alimentares estão entre as mais características patologias do narcisismo, uma vez que estão intimamente associados à imagem corporal e a problemas de auto-estima. Entre estes estão a anorexia nervosa e a bulimia, que são importantes para nós porque ocorrem especialmente na adolescência. Embora a obesidade não seja considerada pelas classificações oficiais um problema psiquiátrico, temos razões para incluí-la neste capítulo pelos aspectos emocionais relacionados a esta condição que já se transformou num grave problema de saúde pública.

ANOREXIA NERVOSA

A anorexia nervosa é um distúrbio grave, que pode levar à morte. Um caso que se tornou público, no Brasil foi o da modelo Ana Carolina Macan, que faleceu em 2006 aos 21 anos de idade, então com 1,74 m de altura e 40 quilos de peso. Sua morte foi devida à inanição e a complicações renais dela decorrentes, e desencadeou uma grande discussão sobre a falta de diagnóstico e tratamento adequados e sobre as condições de trabalho na indústria da moda. De fato, esta condição afeta com maior frequência pessoas para quem o corpo e a aparência têm grande importância, como modelos, atletas e bailarinas.
Este é um transtorno psiquiátrico típico da adolescência, que acomete principalmente o sexo feminino (cerca de 90% dos casos), ou rapazes homossexuais. Suas principais características são uma perda de peso importante, decorrente de restrição alimentar auto-imposta, com repercussões para a saúde global (distúrbios metabólicos, interrupção da menstruação) e com distorção da imagem corporal (Abreu e cols., 2006).
A distorção da própria imagem caracteriza uma dismorfofobia, palavra que vem do grego: dis (alteração) morfo (forma) fobia (medo). Esta condição, que pode aparecer em outros quadros psiquiátricos, é importante para o diagnóstico da anorexia nervosa. Por mais magra que esteja, a garota enxerga-se ainda gorda, ou vê depósitos indesejáveis de gordura em partes do corpo coma barriga e culote, o que a leva a persistir na dieta. O intenso medo de ganhar peso geralmente torna-se o centro da sua vida, e há uma grave negação dos riscos à saúde e dos problemas familiares decorrentes da sua conduta.
As causas do transtorno são complexas e multifatoriais. Além dos aspectos culturais e profissionais já assinalados, existem fatores familiares e psicológicos. Várias teorias apontam a anorexia nervosa como uma expressão do desejo inconsciente de manter um controle mágico sobre o próprio corpo, com o objetivo de estabelecer uma fronteira entre si-mesmo e os outros. É algo como se a paciente pensasse, inconscientemente, “vocês podem fazer qualquer coisa, mas não podem me obrigar a comer. Pelo menos sobre o meu corpo eu mesma que mando!”.
Na história de muitos dos jovens que apresentam o problema aparecem também os abusos psicológicos, físicos e sexuais. Principalmente neste último caso, a anorexia pode representar uma tentativa de conter o crescimento, o que inclui o não desenvolvimento das características sexuais (as formas arredondadas, os seios, os pelos pubianos, etc.). De certa forma, as pacientes encenam no próprio corpo – como uma denúncia silenciosa – a agressão a que foram submetidas, ao mesmo tempo em que revidam o sofrimento vivenciado. Mesmo em pacientes que já passaram pela puberdade, o quadro pode levar à interrupção da menstruação, e a perda de gordura faz com que desapareçam os atrativos físicos associados à sensualidade.
O tratamento deve envolver uma equipe multidisciplinar. Não existem medicamentos específicos para esta condição, sendo utilizados geralmente antidepressivos e outros psicotrópicos – como os antipsicóticos – em função das características de cada caso e das patologias associadas. As terapias individuais, grupais e familiares também fazem parte dos recursos terapêuticos empregados. Em muitos casos, pode ser necessária a internação hospitalar para iniciar medidas terapêuticas mais drásticas e manter a paciente viva.
Há uma indicação formal para internação quando o Índice de Massa Corporal (IMC) estiver inferior a 16,5. Este é um indicador de peso obtido através do seguinte cálculo: peso/altura2. O IMC normal localiza-se entre 18,5 e 25. A modelo Ana Carolina, quando faleceu, estava com um IMC de 13,5!


Um caso clínico nos ajudará a entender melhor algumas dinâmicas familiares que podem estar na base dessa complexa condição. Este é um exemplo de quando um membro da família funciona como porta-voz do grupo, e seu sintoma denuncia um problema que inclui o sistema familiar como um todo.

Os pais de Clara, de 17 anos, recorreram a mim com queixas de que a filha vinha emagrecendo de forma perigosa e insistia em se considerar com excesso de peso, apesar de todas as evidencias objetivas em contrário. Como já haviam tentado sem sucesso uma terapia individual, e a jovem apresentava grande resistência inicial ao tratamento, optei por atender o grupo familiar, composto pelos pais na faixa dos 50 anos e por duas filhas: Clara e a irmã Joana, de 22 anos. Ao dizer “venham todos” eu estava comunicando à paciente meu reconhecimento de que ela não era a “culpada” ou a “errada”, como vinha sendo tratada, e tentei estabelecer com ela uma aliança terapêutica.
Já nas primeiras sessões vieram à tona graves problemas conjugais, que incluíam o abuso de álcool pelo pai e agressões físicas mútuas, e uma nítida coalizão entre as mulheres contra o único homem da casa. A mãe mantinha um vínculo de confidência e de dependência emocional com as filhas, principalmente com Clara.
Uma mãe que se apóia na filha está invertendo os papéis e representa geralmente um fardo que uma menina não pode suportar. Este tema foi trabalhado, conotando-se a doença da filha como uma denúncia dos problemas familiares e, ao mesmo tempo, como uma tentativa inconsciente de deter o crescimento. Desta maneira ela poderia permanecer como um escudo entre a mãe e o pai, uma vez que a irmã mais velha já havia saído de casa para estudar fora. Aos poucos Clara foi abandonando o sintoma e, com sua melhora, o tratamento foi centrado no casal. Nessa fase, tratou-se da aposentadoria recente do pai e seu sentimento de confusão frente à nova fase de vida. Revelaram-se, também, problemas de ordem sexual e outros sintomas depressivos e ansiosos de ambos os pais.
Ao longo do tempo ficou evidente a necessidade de tratamento psiquiátrico do pai. Ele foi encaminhado para acompanhamento e, até onde tive notícias, estava medicado e ainda tentando controlar suas crises de agressividade, embora já então em abstinência alcóolica. Apesar dos problemas familiares e das manifestações típicas da adolescência, Clara apresentou melhora completa da anorexia nervosa e encontrava-se bem, tendo sido orientada a seguir em psicoterapia em sua cidade de origem.

A terapia do grupo familiar mostrou que Clara vingava-se dos pais criando um problema que lhes trazia também sofrimento, ao mesmo tempo em que praticamente os conduziu a procurarem ajuda. No momento em que os problemas conjugais passaram a ser tratados, o sintoma de certa forma perdeu sua função. De fato, a família pode ser um contexto de construção da doença, assim como de cura (Soar Filho, 2003).
Entretanto, sempre é bom lembrar que cada paciente requer uma abordagem diferenciada, e que o caso acima não deve ser tomado como um modelo que funcionaria igualmente para todos os pacientes.

BULIMIA NERVOSA

A bulimia nervosa é outro grave problema, embora subestimado e sub-diagnosticado. Neste transtorno, ocorrem ataques de gula – binge-eating – em que a pessoa ingere uma quantidade enorme de comida, após os quais sobrevém uma grande sensação de mal-estar físico e emocional.
No tipo “purgativo” de bulimia, os episódios de comer compulsivo são seguidos de medidas ou manobras para eliminar o excesso de alimentação, sendo a mais comum o vômito auto-induzido, assim como o uso de diuréticos e laxantes. No tipo “não-purgativo” a pessoa tenta perder o que ingeriu praticando atividades físicas em excesso, ou através de jejum. Em geral os períodos de jejum que se seguem aos episódios de binge levam a novos descontroles alimentares, mantendo-se assim um ciclo vicioso.
O termo bulimia é proveniente do grego, e significa literalmente uma fome (limos) de boi (bous). A condição afeta predominantemente pessoas do sexo feminino e jovens, embora não costume ocorrer tão precocemente quanto a anorexia. Ao contrário desta, os portadores geralmente não apresentam grande variação do peso.
Entre as complicações médicas que decorrem do transtorno estão alterações hormonais e metabólicas, aumento das glândulas parótidas e problemas dentários, causados pelos vômitos repetidos. Assim como a anorexia, a bulimia nervosa frequentemente está associada a outros transtornos psiquiátricos, como os transtornos de humor e de personalidade.
Como em outros transtornos mentais, as causas da bulimia são multifatoriais e complexas. Em programa exibido pelo canal de tevê GNT, foram entrevistadas alunas de uma high school de Beverly Hills, uma das regiões do mundo onde o culto ao corpo e à juventude é mais marcante, inclusive pela proximidade a Hollywood. Muitas garotas revelaram que praticavam vômitos auto-induzidos após as refeições, e que os banheiros da escola rescendiam a vômito, tamanho o número de alunas (e alunos) que faziam o mesmo.
O que foi dito sobre o tratamento da anorexia vale também para a bulimia, especialmente quanto à necessidade de uma abordagem multidisciplinar integrada. Além dos antidepressivos, outros medicamentos que controlam a impulsividade podem ser úteis. Nos últimos anos vêm sendo utilizadas com sucesso técnicas de terapia cognitivo-comportamental, como a manutenção de um diário alimentar pelo paciente.

OBESIDADE

No pólo oposto ao da anorexia está a obesidade, que constitui um grande paradoxo da sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo em que os modelos de beleza apontam para uma magreza cada vez maior, a sociedade de consumo oferece alimentos em quantidades crescentes. Nos Estados Unidos, o tamanho dos lanches e refrigerantes não para de crescer. Também a qualidade da alimentação mudou muito, e hoje predominam alimentos industrializados, hipercalóricos e com excesso de sal e de gorduras. Essa contradição pode muito bem ser chamada de “paradoxo da magreza”.
Está ocorrendo, hoje, uma verdadeira pandemia de obesidade em todas as sociedades desenvolvidas, e mesmo nas mais pobres, inclusive com um número crescente de crianças e adolescentes afetados. Outro aspecto paradoxal da obesidade é o fato de que os setores da população mais afetados são aqueles com menores níveis sócio-econômico e educacional (Azevedo, 2006).
Enquanto a sociedade induz ao ganho de peso, a cultura exige cada vez mais redução de peso. Como efeito colateral, há uma busca desenfreada por tratamentos cirúrgicos para a redução de peso, como as lipoaspirações e as cirurgias de redução do estômago. A demanda por ajuda para lidar com problemas de sobrepeso aparece também na florescente indústria de produtos light e diet, em publicações especializadas em “boa forma”, na proliferação de academias e personal trainers, assim como nos consultórios de endocrinologistas, nutricionistas, psicólogos e psiquiatras.
Nos últimos anos tenho realizado um grande número de avaliações psiquiátricas como parte dos exames pré-operatórios para cirurgias bariátricas (de emagrecimento), e acompanhado pacientes no pós-operatório. Vejo, com preocupação, crescer o número de adolescentes que buscam este recurso, inicialmente criado como uma solução extrema.


Do ponto de vista clínico, considera-se obesidade quando o IMC está igual ou superior a 30. Nãohá evidências científicas de que a obesidade esteja necessariamente associada a problemas psicológicos ou psiquiátricos. Ainda assim, sabe-se que a ansiedade e a depressão podem ser tanto causa quanto consequência da obesidade.
Estudos com a população geral não encontraram mais problemas psiquiátricos entre obesos do que não obesos. Entretanto, entre aqueles que procuram ajuda especializada, há claramente uma maior prevalência de transtornos psiquiátricos. Numa pesquisa feita com candidatos a cirurgia bariátrica, foram encontradas com mais frequência depressão e ansiedade, e existe relação entre a gravidade da obesidade e uma história de depressão e transtornos alimentares. Quase metade (45%) deste grupo de pacientes apresentou história de algum transtorno do humor (depressão ou transtorno bipolar) ao longo da vida . Estes pacientes são mais propensos igualmente a apresentarem transtornos de ansiedade e de controle de impulsos, como abuso de drogas e outras compulsões, inclusive a compulsão alimentar (Kalarckian e cols, 2007).
A obesidade pode, assim como a anorexia e a bulimia, estar associada a uma história de violência sexual na infância, ou de sexualização excessiva dos vínculos entre a criança e seus pais ou outros adultos e parentes próximos. Não é raro observar-se que uma adolescente obesa tenta esconder, sob a gordura, o corpo sensual que poderia desencadear desejo do outro. De forma semelhante, muitas vezes a fome de alimentos - e a obesidade decorrente - representa uma fome insaciável de amor e atenção.

CORPO E AUTO-ESTIMA

Um registro sinistro da mitificação da beleza e da juventude em nosso meio encontra-se na pesquisa da Universidade de São Paulo, junto a setecentos estudantes da área da saúde de ambos os sexos, de vários estados, com idades entre 17 e 26 anos. Foi perguntado a eles o que pensavam sobre o próprio corpo: três quartos desaprovavam a própria aparência física e se incomodavam com pequenos detalhes, e 80% afirmaram que mudariam características do corpo para melhorar a aparência. Esses resultados não seriam tão graves não fosse o fato de que 90% estavam longe de ser obesos, o peso de 65% deles era considerado normal para idade e altura, e 13% revelaram provocar vômitos e usar outros meios purgativos após comer (Ribeiro & Zorzetto, 2004).
Uma paciente minha, estudante universitária de 25 anos de idade, cujo peso era normal, revelou seu sentimento de inadequação, confirmando os dados da pesquisa mencionada. Ela reconhece, aqui, o poder dos modelos e o impacto destes sobre sua própria percepção corporal:

Eu cresci ouvindo que magérrimo é lindo... Eu acredito nisto, e eu não consigo não pensar assim também. Eu olho pra alguém que não é tão magro, mas é bonito, e eu penso: essa pessoa seria mais bonita se fosse mais magra. É absurdo, mas a minha geração toda pensa assim. Eu mesma perderia mais uns cinco quilos.

Os transtornos alimentares fazem parte de um conjunto de patologias narcísicas, ou seja, da auto-estima. Quando dizemos "narcísicos", em psicanálise, não estamos falando de excesso de amor próprio, no sentido mais popular de narcisismo, mas da busca de amor-próprio. São as manifestações de uma busca desenfreada por admiração, reconhecimento e amor.
A aparência, mais do que nunca, substitui hoje outras qualidades pessoais abstratas, como as virtudes pessoais. A admiração dos atributos físicos tomou o lugar da valorização do conhecimento, da capacidade produtiva, dos vínculos afetivos e da sabedoria. É a busca do olhar do outro, do seu desejo, de sua apreciação e de seu reconhecimento. A fome de amor, desse alimento vital para a manutenção da auto-estima, facilmente corre o risco de se transformar na fome física, ou na sua negação total. Afinal, nós temos fome quê?

Referências

Azevedo, A.P. (2006) Aspectos psicológicos e psiquiátricos da obesidade. Em: C.N. Abreu; F.T. Salzano; F. Vasques e cols. Síndromes psiquiátricas. Diagnóstico e entrevista para profissionais de saúde mental. Porto Alegre: Artmed.
Kalarchian & cols (2007) Psychiatric Disorders Among Bariatric Surgery Candidates: Relationship to Obesity and Functional Health Status. Am J Psychiatry, 164: 328-334.
Ribeiro, M. & Zorzetto, R. (2004) O avesso de Narciso. Pesquisa FAPESP, n. 103, p. 34-9.
Salzano, F.T. & Cordás, T.A. (2006) Transtornos da Alimentação. Em: C.N. Abreu; F.T. Salzano; F. Vasques e cols. Síndromes psiquiátricas. Diagnóstico e entrevista para profissionais de saúde mental. Porto Alegre: Artmed.
Soar Filho, E.J. (2003) O médico e a família do paciente. Em: A. Cataldo Neto; G.J.C. Gauer & N.F. Furtado. Psiquiatria para Estudantes de Medicina. Porto Alegre: EDIPUCRS.

19 julho 2010

10 julho 2010

a bola da vez

Não, não se trata da Jabulani, a fatídica bola anti-futebol da Copa. Tampouco se trata de Dunga, o fatídico técnico anti-alegria da Seleçao brasileira. Ainda assim, não vamos sair da esfera do futebol. Vamos falar de outro vilão, este maior do que qualquer bola desgovernada, este aquele que deveria segurá-la, no tempo em que barbarizava com a vida alheia.

A forma como o goleiro Bruno lidou com o desaparecimento da sua ex-amante não deixa dúvidas quanto à sua brutal indiferença pelo sofrimento humano. Enquanto todos procuravam por Eliza, a pretexto de demostrar inocência, o jogador de futebol continuou comparecendo aos treinos do Flamengo, tendo sido filmado às gargalhadas com os colegas de time.

Bruno aparentou tão bem não ter preocupações ou culpa porque não os tem mesmo. Faz parte do repertório sintomático das personalidades psicopáticas a completa falta de empatia, ou seja, de capacidade de se colocar no lugar de outro que sofre. Outro traço psicopatológico é deixar os rastros de seus crimes, pois a onipotência mágica (talvez somada à nossa história de crônica impunidade) faz com que menospreze os riscos. Os psicanalistas sugerem outra explicação: a de que deixam pistas para que venham a ser punidos, por uma compulsão inconsciente de repetição. De fato, faz parte da história da maior parte dos agressores patológicos que tenham sido agredidos enquanto crianças. Nosso caso atual não foge à esta regra. Bruno foi abandonado e negligenciado pelos pais, o que, nem neste nem em qualquer outro caso serve de justificativa para seus atos.

Por acaso, mas nem tanto, pois a psicopatia crassa em nosso meio, o último post deste blog versava sobre as personalidades perigosas. Em outras palavras: personalidades anti-sociais, psicopáticas ou sociopáticas (são todos sinônimos). Mesmo quem não o conheça na intimidade há de reconhecer varios traços no personagem que povoa nossos telejornais, nossas páginas de revistas e nossas conversas e nossos pesadelos.

Os relacionamentos do goleiro com as pessoas que se encontram implicadas no crime revela, mais do que qualquer prova material que venha a ser encontrada, a sua própria identidade social. Bruno, num presságio do que ora se revela ao mundo, há poucas semanas havia defendido o colega Adriano por ter agredido a noiva, minimizando a importância do fato. Enquanto a trama se desvelava perante os olhos e corações atônitos dos brasileiros, o moço seguia sua vida como se nada tivesse acontecido. Participou – segundo atestam os envolvidos – de atos de barbárie inominável, e depois foi ao clube treinar. “Matou a mãe e foi andar de bicicleta”. A indiferença, essa suprema forma de violência!

14 junho 2010

personalidades perigosas


A propósito de um tema que vem recebendo cada vez mais atenção nos círculos especializados, assim como na mídia, transcrevo um questionário idealizado pelo psiquiatra norte-americano Stuart Yodofsky, autor de Fatal Flaw (2005). O objetivo desta "escala" (no jargão psiquiátrico) é auxiliar parentes e outras pessoas próximas a identificar problemas sérios de personalidade, prevenindo-se ou buscando ajuda.


SUSPEITANDO DE ALGO
1. Eu confio nesta pessoa?
2. Essa pessoa costuma levar a sério os seus compromissos?
3. Esse relacionamento me faz me sentir melhor comigo mesmo?
4. Essa pessoa tem a mesma consideração para com as minhas necessidades que tem para com as necessidades dela?
5. Essa pessoa é sensível e afetuosa para comigo?
6. Essa pessoa é honesta em relação a questões importantes do nosso relacionamento?
7. Essa pessoa é honesta e confiável em outros relacionamentos?
8. Eu (e meus filhos) me sinto sempre seguro com esta pessoa?
9. Essa pessoa respeita as regras e obedece as leis?
10. Outras pessoas que eu amo e em quem confio acreditam que esta pessoa seja boa para mim?


ALGO MAIS QUE UMA SUSPEITA
1. Essa pessoa insiste em se envolver em atividades impulsivas, desnecessariamente perigosas ou auto-destrutivas?
2. Essa pessoa nega que tenha um problema?
3. Ela recusa ajuda profissional para o seu problema?
4. Ela permanece sem fazer mudanças apesar de muitas tentativas de ajuda profissional?
5. É possível que no futuro esta pessoa venha a me agredir (ou a meus filhos)?
6. Essa pessoa se mantém envolvida em algum tipo de ato ilegal?

Tratei do tema também no post de 25.out.2008

o perigo da história única


Chimamanda Adichie
O perigo da história única
http://on.ted.com/8Iqz



10 junho 2010

punir ou tratar?


Perguntam-me se aprovo o projeto de lei do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) que altera a Lei de Drogas (Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006). A proposta visa mudar fundamentalmente dois aspectos da lei: o primeiro é prever a participação das Forças Armadas no combate ao tráfego nas fronteiras; o segundo trata das penas aplicadas aos usuários e introduz a possibilidade de internação compulsória para tratamento.

Quanto à mobilização das Forças Armadas contra o tráfego de drogas, principalmente nas fronteiras, são desnecessários maiores comentários. Que combatam também o tráfico de armas, o contrabando de cigarrros, a entrada de terroristas das FARC e de tudo o mais que não nos serve...

O segundo aspecto diz respeito ao que genericamente denomina-se de “porte” de drogas. A lei atual parece feita sob encomenda para tratar dos casos de usuários de maconha: no artigo 28, cuja redação é objeto de mudança pelo projeto apresentado, o porte fica definido os casos de "quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal" e "quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica". As penalidades previstas nestes casos, na atual lei, são: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Fica claro, na exposição de motivos, que a mudança da lei tem em mente principalmente os problemas gerados pela disseminação do uso do crack, com suas conseqüências devastadoras para o usuário, a família e a sociedade como um todo. Com fundamento nisto, o substitutivo do Senador Demóstenes propõe como pena para estas mesmas situações definidas no artigo 28 a detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, sendo que o juiz “com base em avaliação realizada por comissão técnica, substituirá a pena privativa de liberdade de que trata o art. 28 desta Lei por tratamento especializado. A tal comissão será formada por membros indicados pelo Conselho Municipal Antidrogas e será composta por três profissionais com experiência em dependência e efeitos das drogas, sendo ao menos um deles médico”.

Em sua justificação, o projeto diz que “para corrigir o erro” cometido na versão anterior, “volta a punição ao usuário, não para transformar em tema unicamente de segurança pública uma questão que também é de saúde pública. Familiares, educadores e o próprio Poder Judiciário ficaram de pés e mãos atados para internar o usuário. Se ele quiser se tratar, arruma-se uma clínica; se recusar o tratamento, nada se pode fazer além de assistir a autodestruição.” A ambivalência entre as intenções de punir ou tratar, aparece também quando o autor reconhece que “a outra parte, que trata da popularmente denominada ‘internação compulsória’, resgata a possibilidade de prisão para o usuário de drogas, pois a despenalização foi uma experiência ruim, servindo unicamente para potencializar o sofrimento dos próprios viciados e seus familiares” (os grifos são meus).

Ora, confunde-se aqui internação compulsória com prisão, quando o próprio autor cita, apenas algumas linhas depois, a opinião do médico Léo de Souza Machado, especialista da Associação Brasileira de Psiquiatria e membro internacional da Associação Americana de Psiquiatria: “O termo ‘compulsório’ deve estar sempre associado ao termo ‘tratamento médico’ e não a internação, visto que a internação compulsória é carregada de estigma e sofre críticas ideológicas de toda ordem. [...] A melhor maneira de garantir a assistência integral aos dependentes químicos é vincular a substituição da pena privativa de liberdade ao tratamento, que será melhor estabelecido se a câmara técnica for composta por médicos especialistas em psiquiatria, que estabelecerão de maneira individualizada o projeto terapêutico para os indivíduos que forem considerados pelo Judiciário elegíveis para substituição da pena por tratamento especializado”.

O problema do Brasil não é a falta de leis, mas a falta de Estado onde ele mais deveria estar. Neste caso, garantindo o combate articulado ao tráfico de drogas, por um lado (inclusive com medidas diplomáticas duras junto a países “irmãos” que o facilitam), e a garantida de serviços de saúde em quantidade e qualidade necessárias. A falta centros de tratamento e de leitos psiquiátricos em geral, e para tratamento de dependentes químicos em particular, isto sim, merece uma grande mobilização da sociedade e do Congresso Nacional.

Se o objetivo da lei é dar destino e tratamento aos dependentes graves de crack, por que não fazer uma lei explicitamente com este fim. Não faz mais sentido usar a mesma norma jurídica para lidar com situações tão dispares quanto a de um jovem adolescente que possui um baseado em casa e a de outro que se encontra nas malhas da destruição promovida pela dependência ao crack.

04 junho 2010

quase haicai


plumbeazul
azul metal que o dia
en-cobre
leve vela na lagoa
leva a espera...



Lagoa da Conceição, em 06.02.05


30 maio 2010

sobre os riscos do excesso


Durante muito tempo, três inquietações dominaram a relação com a cultura escrita. A primeira é o temor da perda. Ela levou à busca dos textos ameaçados, à cópia dos livros mais preciosos, à impressão dos manuscritos, à edificação das grandes bibliotecas. Contra os desaparecimentos sempre possíveis, trata-se de recolher, fixar e preservar. A tarefa, jamais finda, é ameaçada por um outro perigo: a corrupção dos textos. No tempo da cópia manuscrita, a mão do escriba pode falhar e acumular os erros. Na era do impresso, a ignorância dos tipógrafos ou dos revisores, como os maus modos dos editores, trazem riscos ainda maiores. Preservar o patrimônio escrito frente à perda ou à corrupção suscita também uma outra inquietude: a do excesso. A proliferação textual pode se tornar obstáculo ao conhecimento. Para dominá-lo, são necessários instrumentos capazes de triar, classificar, hierarquizar. Mas, irônico paradoxo, essas ferramentas são elas próprias novos livros que se juntam a todos os outros.

Segmento de A Aventura do Livro - do leitor ao navegador. Conversações com Jean Lebrun, de Roger Chartier, Editora Unesp, 1999. Abaixo, "Le rat de bibliotèque", de Carl Spitzweg, ilustração do mesmo livro.



29 maio 2010

conexões virtuais e neurais - III

continuação deste post


Nesta terceira e última parte do artigo, vou retomar o tema da identidade. Ora, nossas funções cognitivas são inseparáveis daquilo que somos. Não há identidade sem memória e nossa personalidade é caracterizada em grande parte por nossos esquemas cognitivos: como vemos a nós mesmos, como enxergamos o mundo e como filtramos aquilo que ocorre em nossos relacionamentos com os outros.

O filósofo Thomas Metzinger, um dos respondedores da pergunta da Edge Foundation – como a Internet está mudando a maneira como você pensa? – focalizou exatamente o impacto da rede sobre a identidade. Os internautas, afirma ele, correm o sério risco de terem borrados os limites que desenham a própria identidade, perdendo-se numa “vasta e confusa selva midiática”. Para muitos cientistas sociais, as redes de relacionamento virtuais leva ao isolamento afetivo e a um prejuízo importante dos relacionamentos “reais”. A questão, entretanto, parece não aceitar fórmulas simplistas, e há argumentos que fazem pensar exatamente o contrário.


Num dos primeiros livros a analisarem o significado sociológico e psicológico da Internet, Life on the Screen (1997), Sherry Turkle analisa os impactos da rede sobre a noção de tempo e espaço, e sobre identidade pessoal, mostrando como ela muda as maneiras como pensamos, como lidamos com dinheiro, como exercitamos nossa sexualidade e nos relacionamos com outros. O grande risco estaria no quanto as pessoas podem se perder no espaço cibernético. Turkle estudou particularmente as comunidades virtuais onde as pessoas constroem personalidades imaginárias através das quais projetam e realizam fantasias de toda ordem. Segundo ela, podemos estar saindo de uma cultura do cálculo para outra da simulação. Não que isto seja necessariamente ruim, desde que não se trate o mundo virtual como um substituto da vida real, mas como uma alternativa ao mundo fora da tela do computador.

Outro pioneiro nesse campo de estudos foi Pierre Lévy, que viu no surgimento de um “ciberespaço” e no correspondente desenvolvimento de uma “cibercultura” potencialidades positivas para o processo civilizatório, ainda que elas contribuam decisivamente para a dissolução das tradicionais fronteiras tempo-espaciais. A tecnologia não é má por princípio, embora a sua utilização possa ser perniciosa. A Internet, sinaliza Lévy, nasceu do desejo de uma geração ampliar as possibilidades de comunicação e, ao mesmo tempo em que universaliza o conhecimento, proporciona e enfatiza a heterogeneidade.

Em suma, a Internet é o retrato acabado da sociedade contemporânea, esta mesma que não pode ser pensada sem os impactos da informática, das comunicações por satélite e dos avanços nos meios de transportes e da própria Internet. Ela amplia e dissolve, conecta e isola, amplia redes de relacionamento ao mesmo tempo em que pode funcionar como barreira para a intimidade e a proximidade física entre as pessoas. Novas formas de identidade são experimentadas, enquanto os referentes tradicionais de identidade tornam-se cada vez menos importantes, como as redes socias locais e familiares e os vínculos de inserção nas culturas locais.

Quando eu era um adolescente correspondia-me com jovens de outros países, pela curiosidade de conhecer o mundo. Era tudo difícil e demorado: cartas, envelopes, endereços, selos... Hoje, pessoas de todo o mundo conectam-se e formam comunidades de interesses na rede com a facilidade de um clic. Redes de relacionamento como Orkut, Facebook e Twitter permitem encontros inusitados e aproximam pessoas que, de outra forma, jamais se encontrariam. A socialização humana ampliou-se de tal maneira que já não podemos pensar a sociedade humana – e os meios de comunicação que lhe dão coesão – nos mesmos termos de poucas décadas atrás. Minha experiência de psicoterapeuta confirma o que vários estudos recentes apontam, que mais do que substituir a “vida real”, a Internet amplifica e complementa a socialização que ocorre fora dela. Pessoas mais sociáveis tenderão a repetir isto formando e mantendo maiores redes na net. Aqueles que são mais introspectivos e reservados tendem também a reproduzir isto na rede. Por outro lado, tudo leva a crer que as redes virtuais fazem cada vez mais parte da vida real das pessoas, e que a distinção entre uma e outra coisa perca gradualmente qualquer sentido.

A Internet será um marco na história da humanidade com conseqüências ainda mais importantes do que teve a disseminação da imprensa escrita. A Internet modifica nossos processos cognitivos pelo acesso ilimitado e imediato à informação, pela ampliação a níveis inéditos de nossas capacidades associativas, e por uma quantidade de estímulos que – quando não devidamente auto-limitados – podem sim levar o indivíduo a estados de saturação sensorial. Mais do que isto, ela modifica nosso senso de identidade, indissociável dos contextos relacionais.

Faz parte da natureza humana que tenhamos cultura, e fazem parte da cultura as ferramentas que construímos e utilizamos. Estas, por sua vez, nos determinam retroativamente. Se um dia nos vimos como guerreiros e caçadores, e outro dia fomos conquistadores de novos mundos, hoje somos internautas.

18 maio 2010

conexões virtuais e neurais - II


continuação deste post

A questão da qual estamos tratando é: “como a Internet está mudando seu modo de pensar?" Para respondê-la é necessário que se leve em conta duas coisas: o pensamento não prescinde da linguagem, e a mente é um conjunto de processos mais amplos do que aquilo que ocorre no interior do cérebro. Para começar, recorro ao intelectual orgânico da nossa música popular, Caetano Veloso, que já nos aconselhou uma vez: “Se você tem uma idéia incrível, é melhor fazer uma canção. Está provado que só é possível filosofar em alemão”. Mais do que uma boa rima, existe uma grande dose de verdade neste verso, da música Língua. E não é apenas a tradição cultural que explica as ligações entre a língua alemã e a filosofia, senão a estrutura do idioma, o número de palavras para designar diferentes variações da mesma idéia e a possibilidade de formar novas palavras a partir daquelas já existentes. Em suma, o alemão é uma melhor ferramenta para se filosofar do que o português, que provavelmente seja melhor mesmo quando se trate de poetar.

O professor de cultura chinesa Yu-Kuang Chu dá uma boa pista da importância do idioma nos processos cognitivos. Quando presidia um comitê acadêmico bilíngüe, ele valia-se das vantagens que esta contingência lhe proporcionava. Quando pretendia estimular a solução de um problema à moda chinesa, com ênfase nos meios indiretos e nos sentimentos, dirigia as discussões falando em chinês, idioma que, por sua característica pictográfica, proporciona uma forma de pensar menos linear e lógica, baseada na correlação entre conceitos. Quando, por outro lado, preferia induzir uma abordagem mais racional e objetiva, valia-se do inglês, que, como as demais línguas ocidentais, tem uma estrutura baseada na lógica aristotélica.

O idioma é, sem dúvida, a principal ferramenta de comunicação e de intervenção no mundo, o que colocou os humanos numa posição diferenciada na escala evolutiva. Mas não é a única. Desde os trabalhos pioneiros dos ciberneticistas e dos teóricos da comunicação de meados do século passado, a mente já pode ser entendida como algo mais do que o conteúdo de uma “caixa preta” ou como aquilo que ocorre exclusivamente no “interior” do sistema nervoso central. O conceito de mente ampliou-se para abranger todos os processos pelos quais nos comunicamos com o mundo e com ele interagimos. Na imagem original de um dos pioneiros da revolução sistêmica, o antropólogo Gregory Bateson, faz parte da mente do cego a bengala que o guia, da mente do pianista o seu piano, da mente do ceifador a foice com a qual trabalha. Se atualizarmos os exemplos, vamos facilmente identificar o quanto o automóvel faz parte da mente do motorista e, mais importante para nossa discussão, aceitaremos a idéia de que o mouse e o teclado fazem parte da mente do usuário da Internet. As ferramentas com as quais operamos (além da ferramenta lingüística, propriamente dita) são incorporadas ao nosso aparelho cognitivo formando unidades indissolúveis. Mais do que as ferramentas físicas, já mencionadas, também a utilização das ferramentas de navegação disponibilizadas pela Internet, sobretudo o hiperlink, traze impacto importante sobre as nossas capacidades associativas, assim como a acessibilidade à informação modifica toda uma “economia mnêmica”, se me permitem o neologismo. Por exemplo, nos esforçamos agora por memorizar onde guardamos o link para determinadas informações, sabendo que o conteúdo propriamente dito estará disponível na “nuvem”.


A mente não incorpora apenas os instrumentos com os quais interagimos imediatamente com o mundo do qual fazemos parte. Na medida em que trabalha com instrumentos de comunicação que são construídos socialmente, ela é inerentemente social. Tanto o conhecimento quanto as reações emocionais estão mediadas pelos instrumentos de comunicação e troca sociais inerentes à cultura, dentre os quais a linguagem é o mais elaborado.

A pergunta de John Brockman parte do pressuposto de que, sim, a Internet muda o nosso modo de pensar! Como já relatei na primeira parte deste artigo, muitos dos estudiosos que responderam a ela não aceitam este pressuposto como válido. Para muitos a Internet não muda estruturalmente o pensamento, apenas facilitando o acesso à informação e fornecendo recursos suplementares à memória. Brockman, por sua vez, foi declaradamente influenciado pela teoria da informação, pela teoria dos sistemas e pela cibernética, o que explica sua visão da Internet como uma “oscilação infinita de nossa consciência coletiva interagindo consigo mesma”. É neste sentido que afirma que “novas tecnologias geram novas percepções. A realidade é um processo artificial. As nossas imagens do nosso mundo e de nós próprios são, em parte, os modelos resultantes de nossas percepções de as tecnologias que geram”.

Esta é também a minha convicção. A Internet não apenas muda os processos mentais naquilo que eles têm de mais individual, mas opera uma revolução na cultura com impactos importantes sobre a forma como pensamos, como nos relacionamos e como recriamos constantemente nossa condição humana.


se tiver curiosidade sobre o pensamento chinês, clique aqui

02 março 2010

conexões virtuais e neurais - I


Há um crescente interesse nos meios científicos e culturais quanto aos impactos que a Internet pode provocar sobre as pessoas, especialmente sobre o pensamento e as funções cognitivas como aprendizagem, memória, associação e dedução. Refletindo esta preocupação, a Edge Foundation, que mantém um fórum internacional no qual propõe anualmente um tema a um grupo de especialistas, formulou para 2010 a seguinte pergunta: "Como a Internet está mudando seu modo de pensar?".

A multiplicidade de respostas publicadas revela bem o quanto ainda estamos perplexos diante desse fenômeno sem precedentes, e quão pouco sabemos sobre as suas conseqüências. Se num extremo há aqueles que falam de uma nova epistemologia que modifica radicalmente a nossa forma de pensar, como quer John Brockman, o empresário cultural que criou a Edge, no outro há quem veja a Internet apenas como um grande depósito de informações. Ninguém, entretanto, minimiza o seu impacto sobre a cultura e a política.

Brockman, confirmando o que se pode antever na própria questão, defende a idéia de que a Internet muda a nossa maneira habitual de pensar, rompe com o compartilhamento de saberes, e leva ao surgimento de um novo “consciente coletivo”. Seu ponto de vista é fortemente influenciado por vertentes epistemológicas como a teoria da comunicação, a cibernética e a teoria geral dos sistemas, que na década de 60 desempenharam importante papel no nascimento do movimento sistêmico. Nessa perspectiva, a mente não é entendida como um tipo de “caixa preta” localizada no cérebro, mas como um conjunto de operações e instrumentos através dos quais nos comunicamos com o mundo externo. Uma mente que é “socializada” por definição e, portanto, sujeita a ser redesenhada pela Internet.

Há quem simplesmente refute a tese da pergunta. O psicólogo cognitivista de Harvard, Steven Pinker, afirma que embora tenha facilitado o acesso e a forma de organização material da informação a Internet não muda a forma como esta é processada e utilizada. Além disso, argumentam os defensores desta posição, as duas décadas de existência da Internet seriam muito pouco tempo para modificar processos forjados pela evolução ao longo de milhares de anos. Há quem inclusive atribua ao celular maior impacto no cotidiano das pessoas do que à Internet.

O biólogo evolucionista Richard Dawkins enxerga na net alguns problemas, como as falsas informações, a tendência a se ficar “borboleteando” de tópico em tópico sem aprofundamento, e o potencial risco de causar dependência. No entanto, segundo ele, podemos pelo menos ter esperança de que a difusão da Internet no futuro venha “acelerar a tão esperada queda dos aiatolás, mulás, Papas, televangelistas, e todos os que exercem o poder através do controle (seja mal intencionado ou sincero) de mentes ingênuas”.

Vários outros autores assinalam entre as conseqüências potencialmente perigosas da Internet a capacidade de induzir a superficialidade, a credulidade e a distração e de condicionar as pessoas a um modo de fazer escolhas influenciado pela simplificidade dos cliques de mouse. O conhecimento se reproduz e se cria numa profusão nunca antes vista, e a possibilidade de acesso a ele cria soluções e problemas. Queremos saber mais sobre tudo, e geralmente ficamos com pedaços de informação pré-digeridas e fragmentadas. A Internet estaria também levando ao desaparecimento da capacidade de introspecção e retrospecção, e a uma tendência a vivermos nossas vidas num aqui-e-agora permanente. Acomodamo-nos diante da informação facilmente obtida na net, que nos satisfaz as necessidades mais imediatas, e vamos nos desacostumando a buscar nas experiências passadas e na reflexão aprofundada as respostas para nossa vida.

O filósofo Thomas Metzinger vai mais longe: para ele, a Internet não está apenas mudando o nosso jeito de pensar, mas já se tornou parte do próprio modelo de identidade. Não apenas ela é utilizada como “prótese cognitiva” e como um instrumento para “a auto-regulação emocional” (como ocorre nas comunidades virtuais), mas, na medida em que muda nossa atenção e nossa consciência, ela também molda um novo jeito de ser. Aqueles que usam regularmente a Internet, argumenta Metzinger, estão imersos numa “vasta e confusa selva midiática” na qual se perde a capacidade de introspecção, e com ela, a de entrar em contato consigo mesmo e de manter um sólido senso de identidade.

Não há dúvidas de que não se pode separar os eventuais efeitos cognitivos da Internet de outras repercussões sistêmicas sobre a cultura, em seu sentido mais amplo. Dado o seu assustador crescimento e a sua penetração profunda no cotidiano das pessoas, estamos muito atrasados na compreensão da sua importância e de seus impactos, para o bem ou para o mal.

(continua aqui)