30 maio 2010

sobre os riscos do excesso


Durante muito tempo, três inquietações dominaram a relação com a cultura escrita. A primeira é o temor da perda. Ela levou à busca dos textos ameaçados, à cópia dos livros mais preciosos, à impressão dos manuscritos, à edificação das grandes bibliotecas. Contra os desaparecimentos sempre possíveis, trata-se de recolher, fixar e preservar. A tarefa, jamais finda, é ameaçada por um outro perigo: a corrupção dos textos. No tempo da cópia manuscrita, a mão do escriba pode falhar e acumular os erros. Na era do impresso, a ignorância dos tipógrafos ou dos revisores, como os maus modos dos editores, trazem riscos ainda maiores. Preservar o patrimônio escrito frente à perda ou à corrupção suscita também uma outra inquietude: a do excesso. A proliferação textual pode se tornar obstáculo ao conhecimento. Para dominá-lo, são necessários instrumentos capazes de triar, classificar, hierarquizar. Mas, irônico paradoxo, essas ferramentas são elas próprias novos livros que se juntam a todos os outros.

Segmento de A Aventura do Livro - do leitor ao navegador. Conversações com Jean Lebrun, de Roger Chartier, Editora Unesp, 1999. Abaixo, "Le rat de bibliotèque", de Carl Spitzweg, ilustração do mesmo livro.



29 maio 2010

conexões virtuais e neurais - III

continuação deste post


Nesta terceira e última parte do artigo, vou retomar o tema da identidade. Ora, nossas funções cognitivas são inseparáveis daquilo que somos. Não há identidade sem memória e nossa personalidade é caracterizada em grande parte por nossos esquemas cognitivos: como vemos a nós mesmos, como enxergamos o mundo e como filtramos aquilo que ocorre em nossos relacionamentos com os outros.

O filósofo Thomas Metzinger, um dos respondedores da pergunta da Edge Foundation – como a Internet está mudando a maneira como você pensa? – focalizou exatamente o impacto da rede sobre a identidade. Os internautas, afirma ele, correm o sério risco de terem borrados os limites que desenham a própria identidade, perdendo-se numa “vasta e confusa selva midiática”. Para muitos cientistas sociais, as redes de relacionamento virtuais leva ao isolamento afetivo e a um prejuízo importante dos relacionamentos “reais”. A questão, entretanto, parece não aceitar fórmulas simplistas, e há argumentos que fazem pensar exatamente o contrário.


Num dos primeiros livros a analisarem o significado sociológico e psicológico da Internet, Life on the Screen (1997), Sherry Turkle analisa os impactos da rede sobre a noção de tempo e espaço, e sobre identidade pessoal, mostrando como ela muda as maneiras como pensamos, como lidamos com dinheiro, como exercitamos nossa sexualidade e nos relacionamos com outros. O grande risco estaria no quanto as pessoas podem se perder no espaço cibernético. Turkle estudou particularmente as comunidades virtuais onde as pessoas constroem personalidades imaginárias através das quais projetam e realizam fantasias de toda ordem. Segundo ela, podemos estar saindo de uma cultura do cálculo para outra da simulação. Não que isto seja necessariamente ruim, desde que não se trate o mundo virtual como um substituto da vida real, mas como uma alternativa ao mundo fora da tela do computador.

Outro pioneiro nesse campo de estudos foi Pierre Lévy, que viu no surgimento de um “ciberespaço” e no correspondente desenvolvimento de uma “cibercultura” potencialidades positivas para o processo civilizatório, ainda que elas contribuam decisivamente para a dissolução das tradicionais fronteiras tempo-espaciais. A tecnologia não é má por princípio, embora a sua utilização possa ser perniciosa. A Internet, sinaliza Lévy, nasceu do desejo de uma geração ampliar as possibilidades de comunicação e, ao mesmo tempo em que universaliza o conhecimento, proporciona e enfatiza a heterogeneidade.

Em suma, a Internet é o retrato acabado da sociedade contemporânea, esta mesma que não pode ser pensada sem os impactos da informática, das comunicações por satélite e dos avanços nos meios de transportes e da própria Internet. Ela amplia e dissolve, conecta e isola, amplia redes de relacionamento ao mesmo tempo em que pode funcionar como barreira para a intimidade e a proximidade física entre as pessoas. Novas formas de identidade são experimentadas, enquanto os referentes tradicionais de identidade tornam-se cada vez menos importantes, como as redes socias locais e familiares e os vínculos de inserção nas culturas locais.

Quando eu era um adolescente correspondia-me com jovens de outros países, pela curiosidade de conhecer o mundo. Era tudo difícil e demorado: cartas, envelopes, endereços, selos... Hoje, pessoas de todo o mundo conectam-se e formam comunidades de interesses na rede com a facilidade de um clic. Redes de relacionamento como Orkut, Facebook e Twitter permitem encontros inusitados e aproximam pessoas que, de outra forma, jamais se encontrariam. A socialização humana ampliou-se de tal maneira que já não podemos pensar a sociedade humana – e os meios de comunicação que lhe dão coesão – nos mesmos termos de poucas décadas atrás. Minha experiência de psicoterapeuta confirma o que vários estudos recentes apontam, que mais do que substituir a “vida real”, a Internet amplifica e complementa a socialização que ocorre fora dela. Pessoas mais sociáveis tenderão a repetir isto formando e mantendo maiores redes na net. Aqueles que são mais introspectivos e reservados tendem também a reproduzir isto na rede. Por outro lado, tudo leva a crer que as redes virtuais fazem cada vez mais parte da vida real das pessoas, e que a distinção entre uma e outra coisa perca gradualmente qualquer sentido.

A Internet será um marco na história da humanidade com conseqüências ainda mais importantes do que teve a disseminação da imprensa escrita. A Internet modifica nossos processos cognitivos pelo acesso ilimitado e imediato à informação, pela ampliação a níveis inéditos de nossas capacidades associativas, e por uma quantidade de estímulos que – quando não devidamente auto-limitados – podem sim levar o indivíduo a estados de saturação sensorial. Mais do que isto, ela modifica nosso senso de identidade, indissociável dos contextos relacionais.

Faz parte da natureza humana que tenhamos cultura, e fazem parte da cultura as ferramentas que construímos e utilizamos. Estas, por sua vez, nos determinam retroativamente. Se um dia nos vimos como guerreiros e caçadores, e outro dia fomos conquistadores de novos mundos, hoje somos internautas.

18 maio 2010

conexões virtuais e neurais - II


continuação deste post

A questão da qual estamos tratando é: “como a Internet está mudando seu modo de pensar?" Para respondê-la é necessário que se leve em conta duas coisas: o pensamento não prescinde da linguagem, e a mente é um conjunto de processos mais amplos do que aquilo que ocorre no interior do cérebro. Para começar, recorro ao intelectual orgânico da nossa música popular, Caetano Veloso, que já nos aconselhou uma vez: “Se você tem uma idéia incrível, é melhor fazer uma canção. Está provado que só é possível filosofar em alemão”. Mais do que uma boa rima, existe uma grande dose de verdade neste verso, da música Língua. E não é apenas a tradição cultural que explica as ligações entre a língua alemã e a filosofia, senão a estrutura do idioma, o número de palavras para designar diferentes variações da mesma idéia e a possibilidade de formar novas palavras a partir daquelas já existentes. Em suma, o alemão é uma melhor ferramenta para se filosofar do que o português, que provavelmente seja melhor mesmo quando se trate de poetar.

O professor de cultura chinesa Yu-Kuang Chu dá uma boa pista da importância do idioma nos processos cognitivos. Quando presidia um comitê acadêmico bilíngüe, ele valia-se das vantagens que esta contingência lhe proporcionava. Quando pretendia estimular a solução de um problema à moda chinesa, com ênfase nos meios indiretos e nos sentimentos, dirigia as discussões falando em chinês, idioma que, por sua característica pictográfica, proporciona uma forma de pensar menos linear e lógica, baseada na correlação entre conceitos. Quando, por outro lado, preferia induzir uma abordagem mais racional e objetiva, valia-se do inglês, que, como as demais línguas ocidentais, tem uma estrutura baseada na lógica aristotélica.

O idioma é, sem dúvida, a principal ferramenta de comunicação e de intervenção no mundo, o que colocou os humanos numa posição diferenciada na escala evolutiva. Mas não é a única. Desde os trabalhos pioneiros dos ciberneticistas e dos teóricos da comunicação de meados do século passado, a mente já pode ser entendida como algo mais do que o conteúdo de uma “caixa preta” ou como aquilo que ocorre exclusivamente no “interior” do sistema nervoso central. O conceito de mente ampliou-se para abranger todos os processos pelos quais nos comunicamos com o mundo e com ele interagimos. Na imagem original de um dos pioneiros da revolução sistêmica, o antropólogo Gregory Bateson, faz parte da mente do cego a bengala que o guia, da mente do pianista o seu piano, da mente do ceifador a foice com a qual trabalha. Se atualizarmos os exemplos, vamos facilmente identificar o quanto o automóvel faz parte da mente do motorista e, mais importante para nossa discussão, aceitaremos a idéia de que o mouse e o teclado fazem parte da mente do usuário da Internet. As ferramentas com as quais operamos (além da ferramenta lingüística, propriamente dita) são incorporadas ao nosso aparelho cognitivo formando unidades indissolúveis. Mais do que as ferramentas físicas, já mencionadas, também a utilização das ferramentas de navegação disponibilizadas pela Internet, sobretudo o hiperlink, traze impacto importante sobre as nossas capacidades associativas, assim como a acessibilidade à informação modifica toda uma “economia mnêmica”, se me permitem o neologismo. Por exemplo, nos esforçamos agora por memorizar onde guardamos o link para determinadas informações, sabendo que o conteúdo propriamente dito estará disponível na “nuvem”.


A mente não incorpora apenas os instrumentos com os quais interagimos imediatamente com o mundo do qual fazemos parte. Na medida em que trabalha com instrumentos de comunicação que são construídos socialmente, ela é inerentemente social. Tanto o conhecimento quanto as reações emocionais estão mediadas pelos instrumentos de comunicação e troca sociais inerentes à cultura, dentre os quais a linguagem é o mais elaborado.

A pergunta de John Brockman parte do pressuposto de que, sim, a Internet muda o nosso modo de pensar! Como já relatei na primeira parte deste artigo, muitos dos estudiosos que responderam a ela não aceitam este pressuposto como válido. Para muitos a Internet não muda estruturalmente o pensamento, apenas facilitando o acesso à informação e fornecendo recursos suplementares à memória. Brockman, por sua vez, foi declaradamente influenciado pela teoria da informação, pela teoria dos sistemas e pela cibernética, o que explica sua visão da Internet como uma “oscilação infinita de nossa consciência coletiva interagindo consigo mesma”. É neste sentido que afirma que “novas tecnologias geram novas percepções. A realidade é um processo artificial. As nossas imagens do nosso mundo e de nós próprios são, em parte, os modelos resultantes de nossas percepções de as tecnologias que geram”.

Esta é também a minha convicção. A Internet não apenas muda os processos mentais naquilo que eles têm de mais individual, mas opera uma revolução na cultura com impactos importantes sobre a forma como pensamos, como nos relacionamos e como recriamos constantemente nossa condição humana.


se tiver curiosidade sobre o pensamento chinês, clique aqui