04 junho 2012

a psicanálise revisitada - 2

A mente será para a biologia do século XXI o que tem sido o gene para a biologia do século XX”, afirmou Kandel, ainda no final deste. Sua antevisão, que vem seconfirmando até aqui, inclui grandes progressos na compreensão das bases biológicas dos processos mentais inconscientes, dos transtornos mentais e de sua cura.
Ao estudar como se formam as memórias - especialmente aquelas que permanecem inconscientes e que determinam a maior parte de nossavida mental - a biologia tem podido confirmar várias hipóteses da psicanálise e, sobretudo, a importância das vivências mais precoces da criança. Freud e seus seguidores, com base no recurso limitado de recuperação de memórias ao longo do tratamento analítico, intuíram que os primeiros anos de vida são os mais determinantes para o desenvolvimento da pessoa. Eric Kandel retoma essa hipótese e as inúmeras evidências que apontam para uma íntima relação entre estresse e abandono na primeira infância e as predisposições para o desenvolvimento posterior de sintomas psicopatológicos.


No campo dos fatores emocionais da psicopatologia, por exemplo. Ainda na primeira metade do século XX, Anna Freud, que seguiu a carreira do pai, foi uma pioneira no estudo do vínculo entre mãe e bebê e de sua importância para o desenvolvimentode um senso de segurança e confiança. Nas décadas de 50 e 60, Harlow e seus colaboradores estudaram o impacto, em macacos, da separação dos bebês de suas mães entre os primeiros seis meses a um ano de vida, concluindo que este é, tanto para esses animais como para humanos, um período crucial no desenvolvimento de habilidades sociais e de equilíbrio emocional. Na mesma época, Bowlby formulou a ideia de um sistema de apego, baseado nas respostas que os pais (cuidadores) dão aos sinais emitidos pelos bebês quando estes se encontram em situação de desconforto (fome, frio, abandonoetc.), assinalando a maneira como as repetição de experiências negativas, de frustração, ficam marcadas na memória inconsciente determinando futuros padrões de emoção e comportamento.
O esclarecimentodo eixo comum a esses trabalhos - o desen-volvimento de sequelas emocionais e comportamentais resultantes da privação materna para o bebê - recebeu uma importante contribuição de um grupo de pesquisadores que, em meados da décadade 60, descobriu que tanto os seres humanos quanto os animais de laboratório respondem igualmente ao estresse com a ativação de um sistema de regulação hormonal, o eixo hipotálamo-pituitário-adrenal (HPA). Trata-se do sistema que libera o cortisol, hoje já bem conhecido como o “hormônio do estresse”, que tem várias efeitos neuro-tóxicos. Os estudos revelaram que o apego mãe-bebê, por outro lado, reduz as respostas do eixo HPA. Em outras palavras, a separação dobebê de sua mãe, assim como um vínculo insuficiente, provocam danos neuronais que explicam vários aspectos da predisposição futura aos transtornos mentais, e especialmente os déficits de memórias da infância tão comumente observada em pessoas que passaram por essas experiências.
Esses estudos ajudaram a esclarecer, também, o equívoco de outra hipótese de Freud: a de que as pessoas normalmente esquecem as lembranças dos primeiros anos de vida por um processo de repressão, ou seja, por um mecanismo de defesa psicológica. Não somos normalmente capazes de recuperar essas lembranças porque nosso sistema nervoso central não está em condições de registrar, pelo menos nos sistemas de memória acessível à consciência, esses eventos. Já a hiperatividade do eixo HPA e asobre-exposição ao cortisol agravam ainda mais essa amnésia fisiológica.
Não há dúvidas deque interdisciplinaridade é o caminho mais promissor para o desenvolvimento doconhecimento científico, e isto é ainda mais verdadeiro quando se trata doconhecimento da mente humana. Entre os vários outros autores vêm trabalhando no intuito de fomentar o diálogo entre a psicanálise e as neurociências, Karen Kaplan-Solms e Mark Solms (2000), os pioneiros da chamada “neuro-psicanálise”, têm se dedicado a correlacionar os vários sistemas funcionais descritos pela psicanálise à anatomia cerebral, especialmente através do estudos de pacientes com lesões cerebrais. Entretanto, é o tema do inconsciente aquele que representa a mais importante fronteira para o intercâmbio de teorias, e a maior promessa para a construção de um novo corpo unificado de conhecimentos, na interface entre psicanálise e psicologia cognitiva.
Uma visão unificada do inconsciente já vem sendo construída não só entre pesquisadores mas também na clínica, por terapeutas que não temem integrar recursos provenientes de diferentes modelos, com o intuito de proporcionar alívio aos pacientes. Vamos nos aproximando da construção de um “novo inconsciente” que rompe com os preconceitos sectários tanto de cognitivistas quanto de psicanalistas. (continua)

Kaplan-Solms, K. & Solms, M. (2000) Clinical Studies in Neropsychoanalysis. New York: Karnac Books.

20 maio 2012

a psicanálise revisitada - 1



Freud iniciou sua carreira médica como neurologista e neurocientista. Há quem afirme que, tivesse ele seguido com seus estudos sobre o sistema nervoso de animais invertebrados, e teria provavelmente descrito a estrutura dos neurônios como a conhecemos hoje. Foi como neurologista que entrou em contato com os quadros de histeria que serviram de base para o desenvolvimento da teoria e do método psicanalíticos. De fato, as então denominadas neuroses histéricas mimetizam os sintomas neurológicos, embora não apresentem nenhuma lesão propriamente neurológica que os justifique. Em busca da compreensão e da cura para as paralisias, amnésias e alterações de consciência apresentadas pelos pacientes conversivos (histéricos), em sua maioria mulheres, Freud chegou à conclusão de que eram causadas por conflitos psíquicos aos quais o paciente não tinha acesso consciente. Para desvendá-los, criou o método da livre-associação que deu origem à psicanálise.
Apesar da enorme contribuição que deu para o conhecimento da mente humana, Freud, com sua aguda percepção do mundo, sempre soube reconhecer os limites e a provisoriedade de sua teoria, como das ciências em geral. Não surpreende que tenha previsto os avanços que estamos assistindo hoje nesse conhecimento. “As deficiências de nossa descrição”, escreveu ele em 1920, “desapareceriam provavelmente se já estivéssemos em condições de substituir os termos psicológicos por outros fisiológicos ou químicos”. Freud anteviu não só o desenvolvimento da neurociência como a possibilidade de tratar com medicamentos muitos dos sintomas psiquiátricos sobre os quais a psicanálise tinha pouca eficácia.
Com o passar do tempo, na medida em que se multiplicaram e institucionalizaram os diferentes modelos antropológicos, psicanalíticos, psicológicos e psiquiátricos sobre a saúde e a doença mentais, os diálogos entre estes foram se tornando progressivamente mais estereotipados e improdutivos. Ao contrário de Freud, cuja obra é fundamentalmente interdisciplinar, tanto seus seguidores quanto seus detratores persistem no apego a uma duradoura e deletéria dicotomia entre corpo e mente, natureza e cultura, ou biologia e aprendizagem.
Foi necessário alguém com a autoridade de um Prêmio Nobel em Medicina (2000) para ampliar o diálogo entre psicanálise eneurociências, e lhe conferir a importância devida, pelo menos no contexto da comunidade psiquiátrica mundial. Eric Kandel é um neuropsiquiatria norte-americano, nascido em Viena (onde Freud viveu e produziu a maior parte desua obra), que iniciou sua carreira estudando psicanálise, tendo migrado depois para as neurociências em busca de uma maior compreensão dos mecanismos neurofisiológicos da memória. Este austríaco fez, portanto, o caminho inverso ao de seu compatriota mais famoso: partiu da psicanálise para chegar às neurociências.


Como alguém oriundo do campo da psicanálise, Kandel fala com autoridade quando sugere que ela tanto pode indicar caminhos importantes para a pesquisa neurocientífica, como renovar-se a partir desta última. Suas propostas, ainda que fundamentadas em sólido arcabouço científico, podem causar desconforto nos cartesianos mais ferrenhos, pois rompem com uma concepção metafísica da mente, localizando na atividade cerebral o registro e a dinâmica de toda a vida interior. Isso não significa reduzi-la ao seu substrato biológico, nem tampouco, como veremos, menosprezar a importância das experiências emocionais. Ao contrário, Kandel se preocupa em entender como asubjetividade é construída a partir dessas experiências, na medida em que ficam indelevelmente registradas no tecido nervoso e determinam as respostas às novas situações vividas pelo indivíduo. Aliás, é bom lembrar, seus estudos sobre a memória foram primariamente motivados pelo reconhecimento da importância das vivências mais precoces para o resto da vida das pessoas.
No importante artigo “Biology and the Future of Psychoanalysis”, publicado originalmente em 1999, Kandel (2005) assinala a estagnação da psicanálise como fonte de novos aportes à compreensão da mente, e o declínio de sua influência. Ele reconhece as potencialidades surgidas do diálogo entre as ciências cognitivas e a neurociência, e acrescenta: “Minha esperança é que, ao juntar-se à neurociência cognitiva no desenvolvimento de uma nova e estimulante perspectiva sobre a mente e seus distúrbios, a psicanálise reconquiste sua energia intelectual”. Em seguida, descreve alguns pontos de intersecção entre a esta e a biologia e sugere como podem vir a serem investigados, alguns dos quais resumirei a seguir. (continua)

Kandel, E.R. (2005) Psychiatry, psychoanalysis, and the biology of mind. Arlington: American Psychiatric Association.